MINHA OPINIÃO SOBRE O IMBRÓGLIO JURÍDICO ENTRE ROBERTO CARLOS E PAULO CESAR DE ARAÚJO

 

O último livro de Paulo Cesar: detalhes do processo judicial
Assim que saiu a biografia não autorizada "Roberto Carlos em Detalhes", de Paulo Cesar de Araújo, fui correndo comprar quando pude. Era então o ano de 2006 e apesar de já possuir um perfil no Facebook, por não ter ainda computador, pouco acessava-o e nem imaginava criar uma página dedicada ao meu cantor favorito. Como todo fã apaixonado por RC e ávido por novidades sobre o ícone-mor da cultura nacional, celebrei com entusiasmo a chegada ao mercado da primeira abordagem intelectual sobre a carreira do artista. Li o livro - na verdade, devorei-o - em poucos dias. Tomado por aquela curiosidade natural de tudo saber a respeito do artista que há 43 anos nunca me separei um só instante, não percebi nada que viesse futuramente incomodar o biografado. Apreendi aquele livro com a percepção de público não pensando na visão que RC pudesse ter do mesmo. Emocionei-me com a história "Uma História Bonita e Triste" que o introduz, título tirado das próprias palavras do cantor ao ouvir a narração de Paulo Cesar de ter ficado de fora do show que o cantor fez em Vitória da Conquista, em 1973, quando o autor era ainda uma criança. Li o capítulo que narra o acidente de RC aos seis anos em Cachoeiro como se tivesse vendo um filme e torcendo pelo final feliz (ou o menos infeliz possível). Deliciei-me com a narrativa realmente em detalhes de todas as batalhas do jovem RC para primeiro gravar um disco; depois atingir o sucesso. Chorei ao ler a narrativa do falecimento de Maria Rita e a cena comovente do torpor que tomou conta do rei e a constatação disso por seu filho, Dudu Braga. No entanto, o ano de 2007 chegou e o cantor incomodado com os detalhes tão grandes de sua vida pessoal expostas ao público, processou o seu biógrafo-fã.
Eu lamentei evidentemente que o desfecho de tanta dedicação a biografar o seu ídolo terminasse nas barras dos tribunais. Eu gosto de Paulo Cesar, identifico-me com ele por ser historiador e crítico musical, além obviamente de ser fã de quem eu sou fã também. Eu faço História e desde 2008 passei a gostar profundamente de crítica e historiografia musicais. No entanto, como professor de História que é, Paulo Cesar tem uma visão dual e simplista da vida influenciado que foi pelo materialismo dialético de Marx e Engels e por essa razão, ele é parcial em algumas de suas avaliações. Isso está explícito em "Eu Não Sou Cachorro, Não: Música Popular Cafona e Ditadura", sua primeira obra lançada em 2002. Dito isso, podemos adentrar nas questões judiciais e o meu parecer, embora não seja nenhum especialista no assunto.
Liberdade de expressão x direito à privacidade
Não vou fazer uma avaliação técnica do assunto, nem poderia. Apego-me ao debate fã e ídolo. Li este ano o livro "O Réu e o Rei". Achei-o confuso, ambíguo. Nele Paulo Cesar começa abordando a carreira de RC, sua luta por alcançar a vendagem de 1 milhão de discos - segundo ele, algo inédito antes de RC consegui-lo em 1976. Depois vi novas abordagens como a caracterização de Roberto como um censor compulsivo-obsessivo, expõe novamente feridas como a de que o cantor teria se envolvido com Maria Stela Esplendore, casada na época com o estilista Dener. Diz que o encontro promovido em 1980 com Frank Sinatra foi uma jogada de marketing da Revista Manchete, que procurava agradar o artista para gozar de sua simpatia e obter acesso a ele - sempre difícil fora do âmbito do atual Grupo Globo. Ao mesmo tempo, o autor vai pincelando o assunto das batalhas judiciais e mesmo que cite opiniões favoráveis à atitude de RC, procura emoldurar-se a si mesmo como um fã apaixonado e injustiçado pelo seu ídolo. Não vejo assim. Como disse, é triste ler e saber que realmente a editora Planeta não deu sustentação jurídica a Paulo Cesar, desamparou-o, privilegiou os interesses da empresa. Claro, isso estava no contrato que editora e escritor assinaram, mas mesmo assim faltou empenho maior por parte da Planeta em defender Paulo Cesar. Coloquei-me no lugar deste quando chegou às lágrimas na audiência em que RC compareceu com Dody Sirena e seus advogados, na Barra Funda, em São Paulo. Fiquei desolado imaginando aquela cena, não exatamente só por Paulo Cesar, mas pelos dois: o Réu e o Rei. Foi uma litigância que ali despiu o fã e o mito. O fã ficou desnudo e naquele momento a paixão pelo cantor foi substituída pela obsessão literária de manter uma obra de conteúdo vasto e profundo no mercado, após tanta labuta em prepará-la durante uma década e meia. Por outro lado, o mito desnudou-se de sua semidivindade e o Roberto Carlos humano transfigurou-se aos olhos de seu fã judicialmente implacável e inflexível. 
Sim, RC, a pessoa, foi inflexível ao não considerar a proposta de Paulo Cesar de uma revisão da obra na qual o autor acenava com a possibilidade de retirar as partes que lhe incomodavam. RC, talvez orientado por seus advogados, justificou a não aceitação por considerar que aquilo sim seria censura: ou seja, retaliar a obra. Ao que tudo indica, por tudo que li e já sei historicamente de RC, ele simplesmente detesta o que considera explorações sensacionalistas - haja vista o caso de seu ex-mordomo Nichollas Mariano que escreveu O Rei e Eu, Minha Vida Com Roberto Carlos - sobre certos episódios de sua vida que ele mesmo gostaria de contar (coisa que diz desde os anos 1980). Quando RC deixou para trás qualquer indício de irreverência e subversão em meados dos anos 1970, ele passou a supervalorizar a imagem que cantaria em "Amante à Moda Antiga", o poeta do terninho e do cravinho como ele declama durante o show que resultou no álbum "Roberto Carlos Ao Vivo", de 1988. Claro que Roberto é um romântico desde sempre, um patrão generoso como testemunham seus funcionários, um amigo solidário como o que fez com o cantor e inquilino Ed Carlos e um homem cavalheiro, realmente amante à moda antiga, como testemunhou Myrian Rios e além de tudo um sujeito de uma simpatia e carisma incomuns, como todos que se aproximaram dele atestam. Porém, não é perfeito; é um ser humano sujeito a falhas como outro qualquer.
Talvez seja nisso que RC, a pessoa, tropece. Como todos sabem, ele é um perfeccionista irrecuperável em sua arte, na gravação de seus discos e o deve ser na vida pessoal, pois antes do artista vem a pessoa - no caso de Roberto o artista é o reflexo da pessoa. RC não convive bem com a exposição de fatos ou especulações que vilipendiem a imagem que também canta e reforça em "Esse Cara Sou Eu". É como se ele tivesse institucionalizado essa imagem e associá-lo quase a um pervertido sexual insaciável, como Nichollas Mariano o fez, expô-lo como um deficiente físico ao se tocar no acidente que o fez amputar parte da perna direita, especular envolvimentos com gente famosa antes ou depois de casado, tudo isso o irrita e o incomoda profundamente. RC considera a sua história - de vida ou artística - um patrimônio seu o qual só ele próprio deve ou não expor ao público literariamente.
Aí é que adentramos na querela jurídica entre a liberdade de expressão e o resguardo da privacidade alheia. Nossa oitava e última Carta Magna é ambígua em vários pontos o que leva à dubiedade de interpretações e ao debate jurídico quase sem fim. E é justamente no Artigo 5º que se encontra a maior refrega entre direito e dever que os constituintes de 1988 deixaram para todos quebrarem a cabeça: especialistas ou não. Onde termina o direito e começa o dever neste III Título que trata justamente dos Direitos e Garantias Fundamentais? O Parágrafo IV diz que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" e ainda o IX "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Entretanto, o mesmo Artigo 5º, em seu Parágrafo V, diz "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem" e o X "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Como então encontrar um meio termo em que a justiça se estabeleça pela letra da lei?
Como é sabido, não é novidade pra ninguém, a Constituição de 1988, a dita "Constituição Cidadã", procurou libertar o Brasil dos ranços de 21 anos de Regime Militar. É uma Constituição progressista. Nela, o termo "direito" aparece 76 vezes e o termo "dever" apenas e tão somente 4. Cito isto porque sou da opinião de que onde há liberdade sem limites, a libertinagem e a bagunça são iminentes. Claro que não estou insinuando que a Carta Magna de 1988 estabeleceu um Estado anárquico, muito longe disso. Apenas que os constituintes de 1988 acabaram por elaborar uma legislação magna que partiu para o outro extremo da falta de liberdades individuais no Regime Militar. Diante desse fato, progressistas e liberais passaram a empunhar bandeiras libertárias que vieram a se chocar justamente com as liberdades individuais. Uma das mais empunhadas nos dias de hoje, sem dúvida, é a liberdade de imprensa. Existe ao meu ver, uma imprensa que em qualquer episódio em que se sinta lesada, não tarda em lançar mão dessa premissa. É um corporativismo que muitas vezes - ou todas as vezes - tenta justificar a falta de ética e de profissionalismo num pseudo exercício de democracia. É como se a democracia só tivesse seu efeito prático e pleno se editores, apresentadores, repórteres, escritores, cinegrafistas, fotógrafos e apresentadores pudessem de tudo abordar, ainda que uma determinada parcela da sociedade (no Brasil muitas vezes a maioria) seja afrontada e confrontada. É o lastro deixado pelo Iluminismo e a Revolução Francesa no mundo ocidental. Lastro que levou em 2015 o jornal satírico Charlie Hebdo a abusar da liberdade de imprensa e desferir ataques à figura de Maomé, profeta do islamismo. O resultado: 12 mortos e 5 feridos.
Esse quadro nos leva a ponderar se a imprensa realmente não deve ter limites no exercício de sua "liberdade". Trava-se então o confronto que enuncia este artigo: liberdade de imprensa x direito à privacidade. Uma pessoa pública não terá o seu direito de privacidade tão resguardado assim por ser pública? A imprensa  e mais especificamente jornalistas e escritores poderão então escrever o que desejarem e qualquer medida por parte dessa pessoa se configurará necessariamente em censura? São muitas questões que surgem diante da delicada tentativa de estabelecer um limiar entre direito e dever. Para o público, qualquer informação inédita sobre uma celebridade é bem-vinda devido à curiosidade mórbida que o envolve diante da mitificação de sua figura. Porém, celebridades são apenas pessoas de carne e ossos, em geral com mais recursos financeiros, que têm fama. Em quase todos os aspectos são exatamente iguais ao anônimo, acertam e erram o tempo todo. E isso evidentemente envolve a maior celebridade desse país há 54 anos: Roberto Carlos. 
O mito Roberto Carlos, sem dúvida, é muito forte na imaginação das pessoas e em especial na de seus fãs convictos. Essa semidivindade já fez por exemplo, o rei da música brasileira ganhar troféus Imprensa (ao meu ver) nos anos 1990 simplesmente por mobilizar o sentimento pessoal dos jurados em torno dele; a Beija-Flor ganhou um carnaval em 2010 muito por trazer como tema a ele, o que monopoliza uma atenção especial por parte de quem analisou o desfile. Enfim, já é famoso o magnetismo que o artista concentra em torno de si somente com suas extremas simpatia e carisma. 
Como disse, a análise jurídica me foge à competência e analiso aqui a relação fã e ídolo. Paulo Cesar foi irreflexivo ao expor detalhes da vida de RC, que este ou quase nunca gostou de lembrar ou quis esquecer para sempre. Se Paulo Cesar errou como biógrafo não autorizado, a Justiça (parcial ou não) decidiu há 13 anos. O Paulo Cesar que foi inconsequente foi o fã confesso de RC. Por tudo que pesquisou, PC conhecia o desconforto que toma conta de RC há muito tempo quando certos assuntos são abordados pela mídia; conhecia o histórico de reações jurídicas que envolvem o cantor a fim de resguardar aquilo que define como "meu patrimônio", ou seja, a sua história. Em "O Réu e o Rei", PC justifica que tentou procurar o cantor (e de fato procurou) para lhe entrevistar com exclusividade e falar-lhe sobre o projeto de sua biografia. Teve muitas dificuldades com o staff de RC, sobretudo, com Ivone Kassu que a partir de certo momento fechou as portas para PC, é verdade. Contudo, em primeiro lugar, mesmo se conseguisse falar com RC este certamente não o autorizaria a escrever-lhe sua biografia. Segundo, uma vez não tendo conseguido entrevistar com exclusividade o cantor, PC poderia ter optado pelo caminho da sensatez de não incluir assuntos que poderiam resultar em processo como resultou. O afã de historiador de PC ofuscou o fã reverente e zeloso da integridade pessoal de seu ídolo. Outra coisa que PC lança mão para reverberar seu inconformismo com a retirada de seu livro do mercado é que ele lançou mão de histórias que já haviam sido publicadas em revistas, jornais e entrevistas do cantor em várias épocas, que o que trouxe não era nada de novo. Ele tem razão. Mas reuni-las num livro que promete desde o título tudo revelar a respeito do maior pop-star brasileiro ganhou obviamente uma repercussão sem igual antes e na era da internet foi amplificada naturalmente. Fãs e não fãs, senso comum e especialistas, todos quiseram conferir esses detalhes que andaram esquecidos ou nem eram ainda conhecidos de muitos. Embora reconhecendo que a análise puramente artística da carreira de RC deu-lhe um reconhecimento justo e merecido há muito tempo vindo de um intelectual, fato também é que PC mexeu em casa de Marimbondo, podendo ele ter evitado o embargo de uma obra necessária, que lhe deu tanto trabalho com prazer e satisfação, mas lhe resultou em lágrimas e dor de cabeça por não projetá-la apenas com a paixão do fã. Não é o caso de culpá-lo, nada disso. É que ao se aventurar por zonas perigosas da privacidade do rei, ele tornou o epílogo de seu roteiro previsível e lamento tanto por ele, quanto pelo artista. Houve favorecimento jurídico a RC? Concordo que sim. O mito conseguiu, mesmo sem querer, comover os juízes a lhe darem um parecer favorável às suas reclamações. Entretanto, por outro lado, na visão de formadores de opinião e produtores de conteúdo, a imagem de RC foi desgastada e PC e seu trabalho ganharam uma ressonância até internacional suscitando discussões e debates em torno das biografias não autorizadas e da liberdade de imprensa. Foi o final infeliz para uma história que se pretendia feliz.
A capa de "Roberto Carlos em Detalhes"

              

     
 
  

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